A Fábula da Pessoa Esperta o Suficiente

A Fábula da Pessoa Esperta o Suficiente

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Você já lidou com o receio de falhar? Já trabalhou em uma empresa que não tinha uma cultura que permita aprendizado a partir do erro? Essa mentalidade é extremamente comum e já passamos da hora de mudar isso.


No começo da minha carreira como desenvolvedora de software, ninguém esperava (ou não deveria esperar) que eu soubesse de tudo do sistema, das práticas e do negócio em si. Meu objetivo era principalmente aprender enquanto colaborava com a minha equipe para algum produto ou funcionalidade.

Conforme fui ganhando experiência como desenvolvedora, a carga de responsabilidade aumentou e a quantidade de coisas que precisava saber aumentou junto. Me sentia perdida em relação a tanta coisa (e continuo me perdendo). E se eu não souber o suficiente? E se as pessoas não confiarem no meu trabalho? E se eu cometer alguma falha tosca?

Através de conversas e feedbacks, percebi que mesmo as pessoas mais confiantes que eu via como referências estavam em situação semelhante à minha, independente do momento da carreira e que eu estava apenas criando um ideal para mim que não era real e que ninguém conseguia manter a longo prazo. E que muitas pessoas também mantém esse ideal. E que um grupo de pessoas com esse tipo de ideal na mesma empresa cria uma cultura na qual objetivos humanamente impossíveis são definidos e isso leva a consequências catastróficas.

É sobre isso que esse artigo, escrito por Aaron Blohowiak, Senior Software Engineer na Netflix, fala. Esse artigo apareceu para mim numa época em que eu não estava conseguindo lidar com minhas próprias expectativas sobre mim e a mensagem do texto foi muito importante para perceber que as expectativas não eram reais. Além da mensagem do texto, ele também aborda diversos conceitos de psicologia, artigos e livros como referências muito importantes. Boa leitura!


No decorrer da minha carreira desenvolvendo softwares e observando pessoas em empresas grandes e pequenas, comecei a notar uma fábula compartilhada por muitas pessoas desenvolvedoras e gestoras; a Fábula da Pessoa Esperta o Suficiente. Esse mito é uma crença equivocada de que pessoas são como o Demônio de Laplace, em que elas:

  • conhecem o sistema de forma precisa;
  • preveem todas as consequências de suas ações;
  • predizem para onde o negócio está indo;
  • são cuidadosas o suficiente para evitar erros.

Num mundo ideal, isso é de fato tentador, mas prejudicial - como um ideal no mundo real, isso é desastroso. Em busca de um ideal diferente, o Aprendizado Modesto cria uma cultura mais humana e também tecnologias melhores. Neste pequeno texto, espero mostrar como o mito surge, apresentar uma alternativa e sugerir as mudanças que nossa área precisa fazer para chegar nessa alternativa.

A Fábula

Enquanto desenvolvemos ou mantemos um sistema, criamos uma teoria de qual é o problema e uma teoria de qual é a solução. Outra forma de explicar isso é dizer que temos um modelo mental do sistema. Infelizmente, todos os modelos estão errados. A incompatibilidade entre nosso modelo mental e a realidade em algum momento se manifesta como um erro. Talvez como um bug, um design ruim ou apagando a base e dados em produção sem querer. O ponto é que algo será "menos bom" do que somos capazes de imaginar. Conforme nos aprofundamos no problema e descobrimos o que houve de errado, nossa teoria é melhorada.

O problema ocorre quando nosso novo eu, quando parte para analisar o que aconteceu, imagina uma nova versão no nosso eu passado que, se fosse um pouco mais esperta — Esperta o Suficiente — não cometeria aquele erro. Algumas pessoas criam um problema ainda maior ao acreditar que seu eu atual e futuro agora é Esperto o Suficiente. Outras temem que sejam descobertas por terem falhado e se perguntam se merecem estar naquele lugar, sugerindo que o mito contribua no fortalecimento da Síndrome do Impostor. De forma parecida, quando vemos um erro cometido por outra pessoa e acreditamos (com ou sem razão) que esse não é um erro que teríamos cometido, nos usamos como prova de que uma Pessoa Esperta o Suficiente existe.

Uma das partes do motivo pelo qual essa fábula existe, é que ele sempre se manifesta como a pessoa que é um pouco mais esperta ou mais cuidadosa do que a que cometeu o erro. A outra parte é que esse ideal acaba virando a expectativa.

Através de esforço e dedicação, pode parecer que nos tornamos Suficientemente Espertos. Levando em conta a ambição, falhas do passado e hábitos da mente, leva um tempo até descobrirmos diferenças entre o ideal e a realidade. Caso esse período se prolongue, algumas pessoas podem até se convencerem de que se tornaram Espertas o Suficiente.

Se você nunca chegou nesse ponto, leve isso como um sinal de autoconsciência. O Viés do Otimismo, uma ideia enviesada de que "temos menos risco de passar por um evento negativo comparado às outras pessoas", é prejudicial . É fácil cair na armadilha de acreditar que você é alguém Esperta o Suficiente, o que pode levar a te tornar uma pessoa Babaca Brilhante. Também é fácil cair na armadilha de acreditar que a empresa como um todo é Esperta o Suficiente, o que pode levar à falha organizacional.

Se pudermos acreditar de vez em quando que somos pessoas Espertas o Suficiente, podemos ser chegar a acreditar que é possível ser isso o tempo todo. É isso que esperamos. Às vezes é até difícil imaginar como outras pessoas - caso sejam boas nos seus trabalhos - possam não se sentir dessa forma. Podemos até ter dificuldade em imaginar como mais alguém pode não passar por isso e continuar fazendo seu trabalho bem. Essa Ilusão de Superioridade impede que as pessoas sintam empatia e leva a julgamentos ruins.

De vez em quando, a falta de conhecimento de outra pessoa é exposta. Talvez você não ache que é Esperta o Suficiente, mas acredita que Ariel não teria cometido o erro que Cris cometeu. Usamos a existência dessa evidência — real ou imaginária - que outra pessoa não teria cometido aquele erro naquela hora para transformar nossos sentimentos ruins por termos julgado alguém como inferior que outra pessoa por ter cometido aquele erro. Fazemos isso com nós mesmos, fazemos isso com as outras pessoas e nossas estruturas de incentivo reforçam isso.

É triste. É doloroso. É errado.

Apesar de postmortems sem objetivo de culpar alguém estarem cada vez mais populares, frequentemente observo profissionais experientes se culparem em revisões de incidentes, dizendo que deviam ter sabido daquilo. Apesar de nunca usarem essa terminologia sobre as ações de outra pessoa, a Fábula as leva a realizar - e até a aceitar - essa forma de auto abuso.

As pessoas tendem a sentirem vergonha de si mesmas - mas é importante entender o motivo pelo qual elas fizeram o que fizeram (porque fez sentido fazerem aquilo naquele momento!). Em retrospecto, pode parecer bobo, mas nem sempre criamos um ambiente onde pessoas se sintam empoderadas para compartilhar essas "falhas" - Nora Jones.

A indústria está perdendo pessoas boas. Conheço ótimos profissionais que não se aplicam para empresas de tecnologia importantes no mercado por acreditarem que não são Espertos o Suficiente. Infelizmente, vi a brutalidade de se sentir insuficiente guiar pessoas da nossa área para outros papéis onde há menos ambiguidade.

Um novo padrão: O Aprendizado Humilde

Quem segue o Aprendizado Humilde aceita os limites da capacidade humana enquanto procura melhorar suas habilidades técnicas e empáticas.

Essas pessoas reconhecem que seus ideais provavelmente contém erros, não são compreensivos e provavelmente têm lacunas que elas nem tinham ideia. "São curiosas antes de serem furiosas". Buscam entender antes de serem entendidas. O Aprendiz Humilde faz perguntas abertas e percebe que às vezes vão dizer a coisa errada.

Esse é um ideal que podemos seguir e um padrão que devemos defender.

Somos péssimos em comparação com o quão incríveis vamos ser - Reed Hastings, de vez em quando.

Essa frase funciona bem porque estamos constantemente na fase "somos péssimos" e estamos sempre nos esforçando para sermos melhores. Vamos sempre imaginar a próxima etapa de crescimento como uma inspiração.

Uma nova cultura.

Para encorajar e defender o novo padrão, precisamos mudar a cultura do desenvolvimento.

Líderes precisam falar sobre seus erros

Faça ser certo e normal diminuir a expectativa ideal. É fácil falar, mas difícil fazer. É ainda mais difícil fazer de forma que incentive as pessoas a colaborarem sem esperarem algo em troca. Fazer isso bem requer uma sensitividade especial para o risco assimétrico que falar sobre erros representa para pessoas pertencentes a grupos sub-representados.

Recompense o aprendizado, evite a culpa

Além da normalização, compartilhar teorias (e suas lacunas) ajuda as pessoas da equipe a aprofundarem seu conhecimento. Devemos celebrar o aprendizado ao invés de focar na negatividade de falhar - isso também leva a criar métodos que minimizem o custo de falha ao invés de tentar preveni-la. A culpa destrói a Segurança Psicológica, inibe o aprendizado (por você achar que aprendeu errado), faz as equipes terem pior desempenho, leva a burnout e desistência.

Pare de dizer para as pessoas terem mais cuidado

Se ter cuidado funcionasse, poderíamos nos tornar Espertos o Suficiente.

Já foi comprovado que ajudar as pessoas a trabalhar "com mais segurança" e com menos erros não funciona. Muitas visões novas têm sido levadas em consideração desde aquela época. Ainda assim, a indústria de software e outras indústrias ainda operam sob as regras de "tenha mais cuidado" e "talvez não consigamos atingir nossos SLAs esse mês!" como forma de encorajar pessoas a não fazerem "coisas ruins". O ambiente apontado no artigo Just Culture, por outro lado, surgiu há pouco tempo. O artigo fala sobre uma cultura na qual as pessoas não sejam reprimidas por suas ações, omissões ou decisões tomadas de acordo com sua experiência e treinamento. No entanto, atitudes grosseiras e destrutivas não são toleradas. - Nora Jones

Evite agir por si só

Felizmente, nossos modelos mentais estão errados de formas diferentes. Através da colaboração e reunindo diversas perspectivas, nossos pontos cegos podem ser preenchidos pelas pessoas que trabalham conosco. Isso não significa que grupos são Espertos o Suficiente, mas são mais espertos que pessoas sozinhas.

Avalie o desempenho de forma diferente

Pense além do impacto direto. Avalie o que estamos aprendendo, o que estamos ensinando, quão gentis nós somos.

Leve o fator humano no desempenho a sério.

Corrija suas entrevistas

Se sua pergunta de entrevista vem de um problema cujo resultado faz parte de algum artigo científico, você está fazendo isso da forma errada. (Este artigo fala sobre como meu time está tentando abordar entrevistas.)

Continue dando atenção a isso

A Fábula é a sombra que sempre volta, não uma doença que possa ser erradicada. A batalha contra ele vai durar para sempre e vamos ter que lutar contra isso com cada pessoa nova na área. Ao nos tornarmos cientes disso, dando nome a isso, falando sobre isso e mudando nossas estruturas de incentivo com isso em mente, podemos abrir grande vantagem.

Conclusão

A Fábula é difusa, prejudicial e errada. Nossa indústria sofre com essa descrença. Ao trazer isso à tona, temos a oportunidade de mudar. Podemos abraçar um novo ideal, do Aprendizado Humilde. Para tornar isso realidade, uma mudança cultural é necessária. Para nós mesmos e nossa indústria, podemos e devemos assumir essa missão.

Esse artigo leva esse nome de um antigo meme de programação sobre um Compilador Esperto o Suficiente.


Essa é uma mentalidade difícil de desconstruir, mas importante para a evolução da cultura de uma empresa e principalmente para as pessoas trabalhando nela.

Conheci esse artigo através do podcast Maintainable (que super indico!), no episódio de mesmo nome.

Caso queira falar comigo, todas as minhas redes sociais podem ser encontradas em larien.dev. Até a próxima!

O artigo original pode ser encontrado aqui. Thanks for allowing me to translate your amazing article, Aaron!

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